quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A Imortalidade

    "Agnès continuou o seu caminho: o ouvido direito registava a ressaca da música, dos sons ritmados de bateria, proveniente das lojas, dos salões de cabeleireiro, dos restaurantes, enquanto o ouvido esquerdo captava os sons da calçada: o ronronar uniforme dos automóveis, o roncar de um autocarro que arrancava. Depois trespassou-a um ruído estridente de uma mota. Não pôde deixar de procurar com os olhos a pessoa que lhe causava aquela dor física: uma rapariga de jeans, com longos cabelos negros flutuando ao vento, erguia-se muito direita no seu selim como diante de uma máquina de escrever; desprovido de silenciador, o motor fazia uma barulheira atroz.
     Agnès lembrou-se da desconhecida que três horas antes entrara na sauna e que, para apresentar o seu eu, para o impor aos outros, anunciara ruidosamente, ao transpor da porta, que detestava os duches quentes e a modéstia. Agnès pensou: foi a um impulso muito parecido que obedeceu o eu da rapariga de cabelo preto; essa rapariga, para se fazer ouvir, para ocupar os pensamentos de outrem, acrescentara à sua alma um estrepitoso tubo de escape. Vendo esvoaçar os longos cabelos daquela alma tumultuosa, Agnès percebeu que desejava intensamente a morte da motociclista. Se o autocarro a tivesse atropelado, se ela tivesse caído ensanguentada no asfalto, Agnès não teria experimentado nem horror nem pena, mas apenas satisfação."

Milan Kundera

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