terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

A Ilustre Casa de Ramires

    "- Para a quinta do Rio-Manso... Siga pela estrada até à pedreira, depois à esquerda a seguir, sempre rente da várzea...
     Mas nesse instante assomava à porta um latagão de suíças louras, em mangas de camisa, a cinta enfaixada em seda. E Gonçalo, com um sobressalto, reconheceu logo o caçador que o injuriara na estrada de Nacejas, o assobiara na venda do Pintainho. O homem relanceou superiormente o Fidalgo. Depois, com a mão encostada à umbreira, chasqueou o rapazote:
     - Ó Manuel, que estás tu aí a ensinar o caminho, homem! Este caminho por aqui não é para asnos!
     Gonçalo sentiu a palidez que o cobriu - e todo o sangue do coração, num tumulto confuso, que era de medo e de raiva. Um novo ultraje, do mesmo homem, sem provocação! Apertou os joelhos no selim para galopar. E a tremer, num esforço que o engasgava:
     - Você é muito atrevido! É já pela terceira vez! Eu não sou homem para levantar desordens numa estrada... Mas fique certo que o conheço, e que não escapa sem lição.
     Imediatamente, o outro agarrou a um cajado curto e saltou à estrada, afrontando a égua, com as suíças erguidas, um riso de imenso desafio:
     - Então cá estou! Venha agora a lição... E para diante é que você já não passa, seu Ramires de merd...
     Uma névoa turvou os olhos esgazeados do Fidalgo. E de repente, num inconsciente arranque, como levado por uma furiosa rajada de orgulho e força, que se desencadeava no fundo do seu ser, gritou, atirou a fina égua num galão terrível! E nem compreendeu! O cajado sarilhara! A égua empinava, numa cabeçada furiosa! E Gonçalo entreviu a mão do homem, escura, imensa, que empolgava a camba do freio.
     Então, erguido nos estribos, por sobre a imensa mão, despediu uma vergastada do chicote silvante de cavalo-marinho, colhendo o latagão na face, de lado, num golpe tão vivo de aresta aguda, que a orelha pendeu, despegada, num borbotar de sangue. Com um berro o homem recuou, cambaleando. Gonçalo galgou sobre ele, noutro arremesso, com outra fulgurante chicotada, que o apanhou pela boca, lhe rasgou a boca, decerto lhe despedaçou dentes, o atirou, urrando, para o chão. As patas da égua machucavam as grossas coxas estendidas e, debruçado, Gonçalo ainda vergastou, cortou desesperadamente face, pescoço, até que o corpo jazeu mole e como morto, com jorros de sangue escuro ensopando a camisa.

(...)

- Ah cão, ah cão! berrava Gonçalo."

Eça de Queirós

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