terça-feira, 18 de junho de 2013

Uma Aposta Modesta...

Foi na feira do livro. Três pilantras flanando ao acaso da meia-noite pelas barraquinhas em fecho discorriam nuances de ócio galante, deleitados nos prazeres do estilo e das coisas de imaginação. O assunto era  literatura, o pretexto eram os livros. A conversa fluía naturalmente.

"Era queimá-los todos! Os meus livros todos, já estou farto daquilo. Há dias que nem os posso ver à frente. Acendia-se uma fogueia e entornava-se lá tudo: Alexandria com eles!". Refinava uma erudito na exposição destes delírios substantivos, debatendo-se com um saco ainda travesso de aquisições recentes.

Desconcertado com o ardor excessivo destas palavras, tão eivadas de cultura e de espírito, achou por bem obtemperar o pilantra enfático: "O indivíduo que teve a coragem moral de assim se exprimir acabou de atestar inequivocamente e de modo conclusivo a inimputabilidade da sua substância existencial. Em suma - este gajo é doido!", prosseguiu mal recomposto, entre a incredulidade e o fascínio: "Eu defendo imperiosamente a necessidade, a urgência, o valor simbólico da compra de livros às dezenas e às centenas de cada vez. Está implícito neste acto todo um ritual de não resignação e de resistência activa do espírito ao embrutecimento da inteligência mundial, hélas! Mesmo sabendo que, por muito que leia, por muito que queira ler, jamais serei capaz esgotar a biblioteca que possuo - e acreditem que isto é uma frustração - a degustação desenfreada e irreprimível de milhões de páginas de uma só assentada, de milhões de páginas diariamente, todos os dias para o resto da minha vida é um ideal por que vale a pena suportar todos os fardos e as penas da existência, um ideal supremo a que aspira todo o meu impulso estético! (Pensais que Hamlet contemplaria o suicídio acaso se deparasse com o consolo de se poder ler a si próprio numa peça?) Quem não desejaria senão isso - um Leviathã cultural em infinita expansão, ali domesticado e repartido por milhões de estantes, à distância e disposição de uma preguiça? É até te afogares neles, como o Benfica se atola na sua inglória [uso de alguma liberdade criativa - esta parte o enfático não terá enfatizado...]. Que valor tem a impossibilidade manifesta de ler todos os livros que já possuímos - ou, pensando bem, sequer metade, ou mesmo metade de metade...- quando comparado com esse acto de liberdade auto-criativa que é o enfardamento aquisitivo para a frente e em força, o enfardamento como motriz civilizacional? A defesa axiomática da vertigem do enfardamento literário é a última grande cruzada do homem do superior e é, naturalmente, uma causa na qual me revejo" Assim concluiu, num espasmo tremendo de energia melancólica.

A clarividência estrondosa da minha intervenção impunha-se, levando-me a afirmar, pleno de sabedoria e  bom-senso: "Afirmo solenemente perante Deus e como homem honrado que nunca mais no decurso da minha existência ousarei comprar um livro. Até ler tudo o que tenho lá em casa, de fio a pavio, todas as páginas de todos os livros de todas as estantes de todas as salas e montes adjacentes, não mais incorrerei nessa conduta lamentável ou nesse pensamento desviante. Até os ler a todos, nem os queimo, nem os compro!" 

A ideia, tida pelos meus interlocutores por fantasiosa e contrária ao são juízo, varreu, num mesmo sopro de camaradagem, toda a poeira de opiniões discordantes. Circunspectos, os meus juízes incréus, na inclemência reconciliados e irmanados, sentenciando:
"Nunca na vida. Livra-te disso."

E eu, serenamente: "Só no verão, vão logo metade!"

E todo o pensamento, e toda a fantasia, galopando confiantes pela estrada do futuro, destroçados, ferozmente:
                       

                 Era queimá-los...         
                                                                   Comprá-los pela civilização...
                                      Nunca na vida...
                                                                              
                                                           Nem metade de metade...
                                                                                                          
                      A inglória do Benfica!!!!
                        [liberdade poética]
                                                           
Muitas pérolas foram sendo atiradas, muitas outras se perderam no silêncio dos espíritos. Mas do muito que foi dito, reflectido e irrefletido, fica este blog por testemunho, no qual se começou por narrar a história do nascimento de uma aposta que, como um destino, assim se cumpre.
                                                                                                                  

3 comentários:

  1. LOL muito bom! sem dúvida uma grande dose de realismo na disposição caótica dos teus pensamentos!

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  2. Obrigado buddy pela da bigodaça. Foi na gloriosa era do El Latino, hoje matéria de lendas e mistificações incontáveis.

    Realismo e bom-senso: eis duas palavras que perfeitamente me definem!

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